quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Vladimir Nabokov «Desespero»



Não fosse o original e fantástico talento, Vladimir Nabokov seria o escritor mais arrogante e presunçoso que alguma vez li. Este russo, nascido em 1899, é aquele autor capaz de logo no início nos oferecer o final do romance, ou então criar um prefácio qualquer com uma série de spoilers. Mas também não é bem assim, isto é, nada do que Nabokov escreve deve ser interpretado à letra. Há que ter sempre margem para se interpretar o oposto daquilo que está escrito.

«O livro tem menos atractivos de teor russo-branco do que os meus outros romances de emigre; daí, ser menos confuso e irritante para os leitores criados na propaganda esquerdista dos anos trinta; por outro lado, os leitores inocentes acolherão favoravelmente a sua estrutura inocente, a intriga inócua, que, aliás, não é tão familiar como supõe o autor da carta insultuosa do Capítulo 11. Ao longo do livro, há muitas conversas interessantes e a cena final, com Felix na floresta invernosa, tem, evidentemente, muita piada.» De facto, o romance é hilariante em praticamente todos os seus segmentos, com muito espaço para inverosimilhança e escárnio pela literatura e pelos críticos, assim como a União Soviética – o livro foi escrito no auge do regime russo, em 1934. 

Desespero conta-nos a estória de um russo que vive na Alemanha, Hermanm, casado com Lydia, que tenta encenar o crime perfeito: a sua própria morte – uma alusão a Crime e Castigo de Dostoyevsky, suponho. Numa viagem a Praga, Hermann conhece um vagabundo chamado Felix, alguém que supostamente, segundo Hermann, é o seu duplo. Hermann acredita que as suas semelhanças físicas com Felix são perfeitas e então prepara o assassinato do checo para ficar com o dinheiro de um seguro que faz com Lydia. As linhas de Desespero estão embutidas em puro sarcasmo e desprezo pela vulgaridade, um desprezo destinado sobretudo à linearidade literária daquela época: «Desespero, parente do resto dos meus livros, não tem comentário social a fazer, não traz mensagem nos dentes. Não endireita o órgão espiritual do homem nem mostra à humanidade a saída justa. Contém muito menos «ideias» do que qualquer um desses ricos romances populares tão histericamente aclamados na curta câmara de eco entre o aplauso e a vaia.», explica Nabokov no prefácio. 

A “loucura” de Nabokov é tal, que este inicia um dos capítulos do romance de várias formas, todas elas perfeitamente válidas e com nexo, e qualquer uma delas serviria para o autor continuar a desenvolver a obra. De facto, o distanciamento de Nabokov perante os grandes nomes da literatura – ou aqueles aclamados pela crítica – parece-me ser um dos seus objectivos. Criar uma obra de ficção onde a personagem principal é um sujeito matreiro, egocêntrico, em quem o leitor não pode confiar nem acreditar em nada do que ele diz. Hermann sobrepõe-se frequentemente a Nabokov, como se tivesse sido Hermann o autor da obra, o que me leva a questionar se Hermann terá sido um duplo do próprio Nabokov. Contudo, Hermann é escrito e rescrito a todo o instante, logo não pode ser um duplo no verdadeiro sentido do termo; Hermann é uma personagem que se quer transpor para a vida real e tomar o lugar do próprio autor, no entanto, sempre que isso sucede, Nabokov trata de rescrevê-lo.

Desespero é um romance de sarcasmo e ilusão singulares, criado a partir da grande loucura egocêntrica de Nabokov. Um romance a ser relido, sem dúvida.

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