sábado, 28 de abril de 2012

Gabriel García Márquez «A Hora Má: O Veneno da Madrugada»


Alguém anda a colocar pasquins no centro da vila e ninguém sabe quem são os autores, um don juán recebe tiros de caçadeira enquanto anda a cortejar mulheres, um padre anda preocupado com os ratos que povoam a igreja, um alcaide fora da lei - à conta com um abcesso num dos dentes – decreta estado de sítio e recruta um barbeiro e uns homens duros para encontrar a fonte dos pasquins difamatórios.

É assim o universo do terceiro livro da extensa obra do colombiano Gabriel García Márquez, vencedor do Prémio Nobel de 1982, responsável por incontáveis estórias mágicas em redor da aldeia de Macondo e outros locais fictícios do seu país natal. Tido em conta como um dos precursores do realismo mágico, este autor é mestre a contar narrativas ao ritmo de boleros quentes onde personagens vivem a vida num estilo relaxado, apaixonado, mas com fortes doses de violência e justiça pelas próprias mãos, envolvidas num sentido de humor invulgar, com bastante recorrência à superstição e divindades para justificar – em muitos destes casos, para ocultar – um quotidiano adverso, duro e corrupto.

A hora má e seu veneno chegam após Cesar Montero se levantar da cama, sair à rua e constar que havia um pasquim na porta da sua casa a informar que a sua mulher lhe estava a ser infiel: o clarinete do amor de Pastor nunca mais se ouviu na vila graças aos disparos que Montero lhe espetou no bucho. Este é o incidente que despoleta o autoritarismo de um alcaide corrupto, o superior de uma equipa de oficiais também eles corruptos - quase todos eles com cadastro -, que aplica uma lei que obriga o recolher obrigatório de toda a população das 20 às 5 horas para descobrir quem anda a colocar pasquins clandestinos sobre a vida dos habitantes. A restante população vive com o medo que uma nova guerra civil comece, contudo a guerra que mais os preocupa é o dia-a-dia da vila cujo nome não nos é revelado. 

Assassinatos, infidelidades, velhas disputas familiares e muita sabedoria popular e humor fazem parte deste grande romance que só me desapontou um pouco nas últimas páginas. Algumas personagens de Cem Anos de Solidão, o romance mais aclamado de Garbiel García Márquez, também aparecem por cá.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Agustina Bessa-Luís «A Sibila»


Esperava um pouco mais de uma escritora tão bem referenciada como Agustina Bessa-Luís o é. Ou pelo menos, contava com algo diferente, algo mais trabalhado, algo mais complexo e rebuscado, mais ao estilo de Carlos de Oliveira.

Esta autora, nascida a 15 de Outubro de 1922 na região do Douro, conquistou com este mesmo romance os prémios Delfim Guimarães e Eça de Queiroz, dois dos mais importantes galardões a nível lusófono. É-nos contado neste registo a estória da geração da família Teixeira, ao longo de um século de existência, e a sua vida na casa da Vessada, situada no Douro e Minho. A personagem principal é Maria Joaquina, tratada por Quina, que é apelidada de sibila – mulheres proféticas da mitologia grega e também romana – pela sua força, carácter e determinação com que governa o seu espaço e os que a rodeiam, estando sempre disponível para dar a mão a quem precisa de ajuda.

Cronologicamente, a narrativa alberga o final do séc. XIX até meados do séc. XX – o livro foi escrito em 1953 e publicado um anos mais tarde – e relata os tempos de Maria e Francisco Teixeira numa primeira parte, e Quina, os irmãos e os sobrinhos noutra; o romance inicia-se precisamente no final do século passado com Germa, sobrinha de Quina, à conversa com Bernardo e recordar o passado da família. A partir daí, Agustina Bessa-Luís entra numa viagem pelo Portugal rural que estava a sofrer os efeitos da urbanização e mudança social - ainda que de forma muito lenta -, representada por Bernardo e pacialmente por Germa. Quina, sempre descrita como uma mulher do povo, forte e governada, terá algumas semelhanças com a própria autora, creio eu. 

Uma geração que assistiu à instauração da República de 1910 e que passou pelo Estado Novo, ainda que as referências ao fascismo não abundem tanto como seria de esperar, num romance com bastantes referências a grandes pensadores e romancistas britânicos e franceses, escrito com termos que caíram em desuso – muitos próprios do Douro/Minho – num estilo simples e alegre, mas que ficou longe de me empolgar.

domingo, 22 de abril de 2012

Guillermo Arriaga «O Esquadrão Guilhotina»


Para além de ser o argumentista da trilogia de pérolas Amor Cão, Babel e 21 Gramas, o mexicano Guillermo Arriaga é também um romancista.  Profundamente interessado na história do seu país e de toda a América Latina, este autor acompanha também de perto a vida política a sul dos Estados Unidos e apresenta-nos aqui a história do lendário general Pancho Villa.

Guillermo usa Feliciano Velasco y Borbolla de la Fuente, um advogado burguês preocupado apenas no lucro pessoal e não em quem vence quem, para realçar a estupidez das guerras. Feliciano Velasco contrói uma guilhotina que tenta vender ao comandante da revolução Pancho Villa, só que este não está minimamente interessado em pagar pela guilhotina e pelos serviços do advogado, daí que o integra no seu exército libertário e o obriga a zelar pelo bem-estar do instrumento da morte. Com muita ironia e boa disposição e muito humor, Guillermo Arriaga guia-nos pelo México solarengo em tempos de convulsão e injustiça social, retratando um dos seus mais importantes períodos históricos.

Diferente dos filmes que escreve e bem mais alegre, este romance de aproximadamente 200 páginas lê-se muito rápido e proporcionou-me bons minutos de gargalhadas e descontracção. Não sendo um romance excepcional ou impressionante, O Esquadrão Guilhotina é um óptimo livro, ainda mais recomendado pelo baixo preço que a editora Oficina do Livro o está a vender.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Rise and Fall «Faith»


Desconhecida do panorama mundial do hardcore e metal, a cidade de Ghent ofereceu nos últimos anos motivos de sobra para que a coloquem em destaque no mapa. Os Oathbreaker, que editaram muito recentemente o seu primeiro longa duração Mælstrøm, e, claro, os Rise and Fall, que já cá andam há uma década, que editaram muito provavelmente agora em Março o seu melhor álbum, Faith.  

Radicados no hardcore moderno, os belgas não praticam uma sonoridade que possa ser catalogada sucintamente como hardcore punk, pois há aqui uma dose forte de crustcore/d-beat e um groove que remete para os suecos Entombed e Disfear. Referências à parte, o grupo não se cinge a estas referências e explora uma sonoridade suja, sombria e muito sui generis, baseada em riffs ora crus, uma voz atroz muito bem berrada guiada por um baixo e uma bateria com a pujança de uns Trap Them. Gravado por Kurt Ballou (Converge) no seu God Studios, Faith é uma espécie de combinado especial dos três discos anteriores num patamar de maturidade superior e com uma boa ascensão técnica e criativa.

A Hammer and Nails, a primeira faixa do disco, é apenas um empurrão para o ritmo desenfreado e raivoso de Deceiver que, em apenas dois minutos resume muito da essência deste disco: canções objectivas geralmente com a galopada em alta na bateria de Wim, riffs crus, bem trabalhados e simples, ainda que por vezes a melodia marque sua a presença – mais notória nas faixas Burning at Both Ends e Things Are Different Now. Não seriam nunca na vida uma banda tradicional de hardcore se gravassem uma Breathe e muitos menos com a variação rítmica e progressiva da última canção Faith/Fate.

No geral, Faith é um disco de alta qualidade, de boa variação – ainda que obediente às raízes hardcore do grupo -, com os seus momentos mais negros e arrastados, ainda que o ritmo forte seja uma costela importante neste corpo belga. O dedo de Kurt Ballou é tão evidente que para quem conhece bem os seus trabalhos, e especialmente a produção de Converge, este disco vai ter algo de familiar.

8/10

«Em Paris»


Os dias de Inverno fustigados pela chuva e pela neve na cidade de Paris não tiram beleza à cidade do amor, bem pelo contrário. A cidade responsável pelo lendário Maio de 68 e todo o período de prosperidade artística e renovação cultural é palco de mais uma homenagem cinematográfica, desta feita pelo jovem realizador Christophe Honoré.

Depois de ter acabado a relação com Anne (Joana Preiss), Paul (Romain Duris) entre numa depressão profunda e regressa a Paris para viver com o seu pai e o seu irmão Jonathan (Louis Garrel). Guy Marchand, que interpreta o papel do pai, é um homem na casa dos 60/70 anos divorciado de Alice (Alice Butaud) e a âncora de uma família que ainda não recuperou da morte de uma filha. Enquanto Paul passa os dias em casa embrulhado em pensamentos tristes, a relembrar o passado a dois com a ex-namorada, Jonathan sai de casa com frequência e conquista o coração de várias mulheres nas ruas geladas de Paris, nos parques junto ao Sena.

Honoré capta bem a espontaneidade que os franceses têm no seu dia-a-dia, quer na rua, quer numa conversa casual em casa, sempre descontraídos e, mesmo quando se zangam, conseguem manter sempre aquela postura séria, ainda que leve. A narrativa centra-se em torno do pai e filhos, ainda que mais nos filhos e o amor que ambos sentem um pelo outro, na capacidade de despertar o amor fraterno e de união nos momentos mais difíceis, sem esquecer o grande desempenho de Preiss nas recordações de Paul enquanto casal. Este não é um filme linear e, ao mesmo tempo, também não é demasiado invulgar; não é um filme alegre, mas não o é triste, tampouco: é um tipo de filme que roça o drama e o romance, com boas doses de sensualidade e bom desempenho por parte de todos os actores, incidindo no espírito e capacidade mágica de “curar” os males que Paris tem.

Não sendo o melhor filme de Romain Duris – e o mesmo se aplica a Louis Garrel -, porque o seu melhor papel ainda é para o Thomas de De Tanto Bater o Meu Coração Parou, o conceituado actor acaba mesmo por deixar Garrel brilhar, ou pelo menos, dar um toque de alegria ao filme. O mesmo Garrel que no início da película avisa que não é um herói, mas um mero narrador. 

Título original: Dans Paris
Argumento: Christophe Honoré
Realização: Christophe Honoré 

terça-feira, 17 de abril de 2012

«Gritos 4»


Dez anos depois do massacre de Woodsboro – como assim ficou conhecido -, Sidney Prescott regressa para promover um livro que ela escreveu sobre os acontecimentos que marcaram a vida dela e reencontra os velhos amigos Gale Weathers (Courteney Cox) e Dewey Riley (David Arquette), que é o novo Sheriff e um dos heróis locais. O assassino conhecido como Ghostface volta para fazer das suas e fazer vida negra a Sidney (Neve Campbell). 

Até aqui, nada de realmente novo no mundo do terror. Uma alcunha extremamente assustadora como o próprio nome Ghostface sugere de imediato, uma década depois do último Gritos e o mesmo Wes Craven de sempre: em trinta anos de cinema, a única coisa boa que o realizador gravou foi mesmo o clássico Pesadelo em Elm Street… que viria a ser penosamente prolongado até perto do Pesadelo nº 10 e que, se tudo correr bem, vai ter um qualquer cruzamento com Sexta-Feira 13 e o Massacre do Texas. Há que estar preparado.

Tudo o que se passa neste quarto capítulo da série é lastimoso, previsível, desajustado, aborrecido, etc, etc. Tentam novamente recriar o primeiro capítulo da saga – que até nem é mau de todo, diga-se de passagem -, mas tanto tempo depois decorrido já não pega. Uma heroína com a força dum super herói, um vilão que também ele é dotado de super poderes, um quase-herói (Dewey), uma quase-heroína (Gale), actrizes bonitas, muito silicone e onde ficou o guião? Tantos milhões de dólares que foram para o lixo e ao mesmo tempo tanta gente que enriqueceu com este filme.

Nem com açúcar, nem com sal, Wes Craven não vai lá e também não deve estar muito preocupado com essa situação. Nem terror, nem terrir: à primeira vez tem alguma piada, à quarta já é suplício. 

Título original: Scream 4
Argumento: Kevin Williamson
Realização: Wes Craven

segunda-feira, 16 de abril de 2012

«A Pele Onde Eu Vivo»


O cinema espanhol é seguramente um dos que mais cresceu nas últimas duas décadas, tal é o número de prémios internacionais que recebe e a quantidade de actores também espanhóis que figuram já nas passerelles de Hollywood. Um dos grandes culpados deste fenómeno é o controverso realizador Pedro Almodóvar, responsável por nada mais, nada menos que Hable Con Ella, Volver e La Mala Educación.

A Pele Onde Eu Vivo estreou no ano passado e, consigo, mais uma vez se voltou a falar castelhano nos grandes festivais de cinema por todo o mundo. A estória, baseada na novela Mygale de Thierry Jonquet, passa-se em torno de Robert Ledgard (Antonio Banderas), um brilhante cirurgião que viu a sua esposa sobreviver a um acidente de viação que a deixou com horríveis queimaduras graves, mas que não conseguiu ultrapassar o desgosto causado pelas mesmas. A sua filha Norma (Blanca Suárez) é tudo o que lhe resta de bom na vida, até ao dia em que a jovem é violada numa festa por Vicente (Jan Cornet) e morre numa insituição psiquiátrica. Estes acontecimentos conduzem o médico a um louco plano da cirurgia moderna: a transformação de Vicente, entretanto raptado, numa bela rapariga para ocupar, ao mesmo tempo, o lugar de filha e esposa na casa do Dr. Robert Ledgard.

Elena Anaya dá vida a Vera, o primeiro ser humano a resistir a uma reconstrução facial, mudança de sexo e de pele, assim como uma lavagem cerebral. Com uns toques de Hitchcock e um ambiente obsessivo, Pedro Almodóvar recria um pouco os filmes de terror psicológico/drama da velha guarda, mas por vezes fica a sensação de que falta algo mais às personagens para tornar todo este ambiente num verdadeiro sufoco – se é que era essa a intenção de Almodóvar. Há ilações a retirar deste filme – como, aliás, sucede com todos os filmes deste realizador: será que, por mais moderna que seja a ciência, conseguiremos emular um ser humano que perdemos? Será a tecnologia capaz de recuperar e/ou criar uma pessoa que pense do zero, como uma máquina? A resposta é, obviamente, não. Elena Anaya, e o seu grande papel, demonstram que por mais moldáveis e evoluídos que possamos ser, no fundo uma cópia nunca substitui o original.

Denso e reflexivo, esta proposta de Pedro Almodóvar marca o regresso de Antonio Banderas à sétima arte pela porta grande e a confirmação da boa carreira de Elena Anaya.

Título original: La Piel Que Habito
Argumento: Pedro Almodóvar, Thierry Jonquet
Realização: Pedro Almodóvar

sábado, 14 de abril de 2012

Killswitch Engage «Alive or Just Breathing»


O álbum que veio a aniquilar o movimento nu-metal veio precisamente da Roadrunner Records. Em Maio de 2002, a editora norte-americana lançou um dos seus melhores discos, um dos mais importantes do espectro metal e aquele que, para mim, continua a ser o meu favorito em toda a década passada.

Formados a partir das cinzas de vários projectos na onda do crossover e hardcore punk, o grupo de Massachusetts incorpora membros de Overcast – por onde passou Brian Fair, vocalista de Shadows Fall -, Seemless, Times of Grace ou Blood Has Been Shed que se vão mantendo concentrados quase exclusivamente em Killswitch Engage. Recentemente a banda viu regressar o vocalista original Jesse Leach, que participou neste disco, mas que abandonou o microfone para explorar sonoridades bem diferentes. Agora, em 2012, o grupo está de novo na máxima força para gravar, espero, um digno sucessor de Alive or Just Breathing.

Claramente influenciados pela primeira parte da história dos In Flames, o quinteto explora bem a fusão do death metal melódico sueco com o thrash – também ele melódico – e o hardcore norte-americano, num estilo musical que já há muito que provou ter que se reinventar, pois simplesmente já não traz nada de novo. Com excepção ao disco de 2009, Killswitch Engage [II], todos os discos editados pela banda são de alta qualidade e demonstram um grupo que ainda se vai conseguir reinventar para estar à altura da exigência dos fãs que – incluam-me – esperam ardentemente por um verdadeiro sucessor da obra-prima de há dez anos. Sim, parece que foi ontem, mas passou já uma década desde que ouvi os riffs pesados de Life to Lifeless e ouvi Jesse Leach a prometer com «the time approaches, […] we will rise, this Babylon falls». O groove e a toda lenta que marcam o tema, ainda que sensivelmente a meio as guitarras puxem um pouco pela bateria e novamente a voz avisa «the time approaches», desfazendo-se em «who will hear your cries as you fall?...». O aviso está dado e a voz crítica e extremamente envolta num positivismo que marca este registo continuará a alertar para a união social e o amor como forma de protesto a todo o mal do mundo.  

A revolução começa dentro de nós mesmos, como tão bem explica Self Revolution, o mosh pit abre com os acordes e os breakdowns de Fixation on the Darkness – um dos temas mais fortes e o exemplo perfeito de como misturar correctamente vozes limpas com peso - e a serenata chega-nos sob a forma melódica, bela, harmónica de My Last Serenade, um dos temas mais cantados em todo o disco e, claro, seguramente um dos mais apreciados pelo ouvinte mais “light”. Os rufar inicial dos tambores de Life to Lifeless e o piano de Just Barely Breathing aquecem a toada do tema mais brutal do disco, To the Sons of Man, levando a escalada rumo ao topo de Rise Inside, com paragem em Temple From the Within (recuperada do disco de estreia homónimo) e numa das passagens mais marcantes do disco em termos de emoção: The Element of One - «Breathe me in, I'm forever deep within, I'm eternal».

Notória a sua repescagem de Killswitch Engage, devido ao ritmo rápido e mais orientado para o death metal, Vide Infra interrompe-se com o instrumental de Without a Name e desagua no estrondoso músculo e coração dos seis minutos de Rise Inside. Chegou a hora de fazer a diferença, compreender o amor que nos une e elevarmos as nossas vozes («Rise inside, free your mind raise your fist! To signify!»), assim nos diz este último tema marcado pela pujança do baixo de Mike D'Antonio e os berros de Jesse Leach – «Embrace what we have… It might be, the last time! In this life we will rise if we find the strength to unify».

Posto isto, Alive or Just Breathing é uma lição de esperança e de respeito pelo que nos rodeia. É um daqueles discos que a compreensão das letras é obrigatória para a absorção da essência que jaz no coração dos seus músicos. Por todo o significado e memória que me traz, pela qualidade musical e pela forma como ainda se mantém actual e de grande referência, nem que pudesse quereria eu mudar o que quer que fosse nesta obra ímpar.

10/10

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Herberto Helder «Os Passos em Volta»


Não concede entrevistas, não gosta de ser fotografado, não aceita prémios literários e a sua vida é, muito basicamente um mistério. Reza a crítica que o madeirense Herberto Helder é um dos maiores poetas da actualidade e talvez o que em melhor posição se encontra a suceder a Pessoa no pódio dos ilustres. 

Os Passos em Volta, e ao contrário da maioria da sua obra que se encontra escrita em verso, é uma obra que caminha algures entre o conto, o romance e o discurso autobiográfico num estilo muito sui generis e, acima de tudo, muito poético e reflectivo. A partir de uma personagem que se multiplica, Herberto Helder parte para uma viagem que, como o título claramente sugere, acaba onde começa. Este homem parte à procura da sua existência em Deus, mas este não lhe dá as respostas que busca, direccionando a personagem ao encontro das artes e da poesia. Ora sóbrio, ora bêbedo na companhia de mulheres, fumando cigarros pensativos (esta tem direitos de autor), a personagem cultiva-se com livros e com a música de Johann Sebastian Bach, carinhosamente traduzido pelo autor para João Sebastião Bach.

Através de uma linguagem muito trabalhada e poética, mas não necessariamente complicada, as cerca de 190 páginas tornam-se demasiado curtas na medida em que sabem a pouco; de facto, este é um daqueles livros que nos entristece mal o acabamos. Depois de percorrer o mundo, as ruas e bares da Holanda e de regressar ao ponto de partida, Os Passos em Volta é uma obra singular de Herberto Helder.

terça-feira, 3 de abril de 2012

«Super»


Um novo super herói sem super poderes com uma também super ajudante sem os referidos super poderes surgem nas perigosas e sujas ruas dos Estados Unidos. Crimson Bolt, armado com uma chave-inglesa, e Boltie tentam dar graça a um filme que roça o enfadonho durante quase toda a sua hora e meia de filme.

Antes de Frank (Rainn Wilson, que tão bom papel desempenhou em A Casa dos Mil Cadáveres, Sete Palmos de Terra, etc) conhecer Libby (Ellen Page, a canadiana que participou nos indies Juno e Tracey’s Fragments) na loja de banda-desenhada onde esta trabalha, Frank trabalha num restaurante a fritar comida, onde, apesar de não ser muito feliz, tinha a companhia da sua esposa Sarah. Um dia qualquer, Sarah (a fantástica actriz daquele super filmão Armageddon que marcou o declínio de Bruce Willis como actor) decide deixar Frank por troca com Jock, um barão da droga interpretado por um Kevin Bacon que desde Mystic River não faz nada de agradável. Dois bons actores versus dois actores não bons.

O que se segue é algo que certamente já adivinhou. Frank decide ir à luta por Sarah. Aproveita pelo caminho para combater algum crime na rua e é eficaz: em caso de dúvida, espetar com a chave-inglesa na cara dos criminosos. Não é tão elegante quanto o Super-Homem, nem tão cavalheiro como o Batman, mas é eficaz. Boltie é a rapariga maravilha, uma espécie de Robin versão inútil que bebe dez latas de Red Bull ao dia. Pouco ou nada funciona aqui e os eventos sucedem-se de forma previsível e demasiado estereotipada e exagerada; a carnificina está, em termos de realização, bem elaborada. Mas até a violência parece uma cópia saída de Planeta Terror e isso, não abona nada em favor de uma ou outra gargalhada que o fim do filme proporciona.

Bem intencionado, escusado e sem brilho, este filme faz-me encarar X-Men como uma espécie de santo graal do cinema de heróis. 

Argumento: James Gunn
Realização: James Gunn

domingo, 1 de abril de 2012

José Saramago «A Jangada de Pedra»


Joaquim Sassa atirou uma pedra ao mar com força sobrenatural, Joana Carda dividiu o chão com uma vara de negrilho, José Anaiço atrai uma nuvem de estorninhos, Pedro Orce sente a vibração da terra com os seus pés e a Península Ibérica vai à deriva pelo Atlântico em direcção aos Açores.

Esta jangada de pedra que é a união de Portugal e Espanha num só país, distante da Europa, é uma fábula que José Saramago escreveu em 1986, ano em que Portugal entra na Comunidade Económica Europeia (hoje União Europeia), e que defende a ideia do Iberismo, através de uma crítica ao pós-25 de Abril e a situação de crise que o país atravessou na década de oitenta – e que ainda atravessa, como todos sabemos. À excepção de Pedro Orce, um sevilhano, todos os protagonistas deste romance são portugueses (há, mais para o final da obra uma outra personagem espanhola que se junta ao quarteto) e, como descrito no primeiro parágrafo, passaram por eventos estranhos que coincidiram com a ruptura territorial da península; os personagens vão-se conhecendo em ritmo nómada, tal como antes da invenção do automóvel, época onde o povo português e espanhol, tão parecidos em vários aspectos observados por Saramago, se deslocavam com bastante frequência de terra em terra em busca de novos locais.

Como é apanágio da obra samagaguesca, existe uma série de eventos que resultam no caos social e que conduzem à intervenção das forças de segurança e defesa do Estado, assim como uma comunicação social que procura, através da ciência, encontrar justificações para o absurdo da realidade; em pânico, o rei espanhol e os ministros de Portugal reúnem-se para tentar perceber e emendar a separação da Península Ibérica do resto do mundo, enquanto são pressionados pelos governos norte-americanos e europeus. O ritmo da acção principal é frequentemente cortado pela intervenção de um narrador heterodiegético que nem sempre sabe o que vai acontecer no momento seguinte da história, mas que gosta de utilizar provérbios e desmistificar os mesmos. De facto, e acontece isto na maioria dos romances de Saramago, há um exagero na hora de extrapolar os ditos populares e, não que o autor não tenha razão, estas intervenções narrativas cortam em demasia o ritmo da história e tornam-se, por vezes, aborrecidas.

Exagero também na forma gratuita como, por vezes, Saramago aproveita para criticar as divindades;  é evidente que o recorrer em demasia à crítica cristã nem sempre funciona e só, quando bem empregue, resulta bem. Exemplo crasso deste exagero, e tal como o próprio escritor admitiu numa entrevista, nem sempre o uso da crítica funciona da forma que o autor tem em mente: a utilização de «Deus é um filho da puta» na obra Caím acabou por por de pés atrás o mais ateus dos ateus. Aqui não fala da mãe de Deus, porém exagera manifestamente na recorrência à crítica em quantidade e não em qualidade, passe-se os termos. 

A simbologia é outro dos aspectos bem trabalhados nesta obra, mas, e comparando com Ensaio Sobre a Cegueira, por exemplo, fica um pouco aquém do esperado. Em termos gerais A Jangada de Pedra é um bom livro, ainda que padeça das referidas quebras narrativas e de um bocadinho de falta de criatividade que Saramago utilizou na elaboração de Memorial do Convento ou O Evangelho Segundo Jesus Cristo.