sexta-feira, 27 de maio de 2011

«Revolutionary Road»


Situado na década de 50 durante o “boom” da economia norte-americana, Revolutionary Road aborda a vida de aparências e a infelicidade, tema que Sam Mendes já nos tinha oferecido em Beleza Americana. Leonardo DiCaprio e Kate Winslet, velhos conhecidos de Titatic, reencontram-se novamente nos papéis de Frank e April Wheeler, um jovem casal na casa dos 30 que vive num típico bairro da classe burguesa nos subúrbios de Connecticut.

Mendes teve o cuidado de retratar a sociedade da época de forma bastante fiel, não apenas nas roupas, decoração e veículos, mas principalmente a forma como as relações sociais e conjugais se desenrolavam. Frank é um jovem que trabalha dez horas por dia no departamento de marketing numa empresa de comunicações - a mesma que o seu pai trabalhou arduamente durante vários anos – e April é uma mera dona de casa obediente com dois filhos para criar. Apesar da excitação dos primeiros anos de casados e de não faltar riqueza material nas suas vidas, ambos são infelizes nas suas vidas: April sente-se miserável por passar o dia em casa a tratar da casa e Frank vive para um emprego que odeia e onde não se sente valorizado.

Tudo pode mudar no dia em que April sugere a Frank a ideia de se mudarem para Paris e começarem novamente do zero numa cidade cheia de vida. Este rumo parece agradar bastante a Frank, pois é a oportunidade para ele explorar e descobrir exactamente o que quer fazer com a sua vida, enquanto que para April é tudo o que ela sempre desejou: ser independente e ter o seu próprio emprego. Esta mudança estimula bastante Frank, mas o facto de poder passar a ser sustentado pela esposa é algo que estupifica os seus amigos e coloca algumas dúvidas a ele mesmo. Com efeito, e não obstante Frank adorar a ideia, o facto de deixar de ser ele o único “ganha pão” da família assusta-o, como se fosse perder a autoridade familiar e respeito social.

O filme foca-se na infelicidade das vidas de aparências tipicamente norte-americanas, no vazio sem esperança. Contrastando com algumas cenas de aparente alegria estampada nos rostos do casal, a complexidade dramática dos diálogos e das cenas onde existe confronto de ideias transmitem uma tensão enorme, desde o início até ao fim. As discussões e berros dos Wheeler trazem ao de cima sentimentos que não esperamos encontrar, tal é a calma presente no filme, tal é a repetição do mesmo cenário central, a casa e o final de tarde melancólico. 

Sam Mendes foi capaz de realizar mais um filme dentro da temática onde ele é rei e senhor, recheada de pequenos elementos que passam despercebidos à primeira visualização em casa e muito certamente num cinema cheio de gente a ruminar pipocas com afinco à espera de cenas íntimas que não surgem nunca. Não deixando de lhe tirar o chapéu, fica a ideia de que Mendes podia ter explorado melhor o emprego de Frank através de cenas mais intensas - aquelas que acontecem na casa dos Wheeler. O final, esse, é do mais simbólico e belo que se pode contemplar na sétima arte.

Realização: Samuel Mendes
Argumento: Justin Haythe (baseado num romance de Richard Yates)
Produção: DreamWorks SKG, BBC Films, Evamere Entertainment, Neal Street Productions e Goldcrest Pictures

terça-feira, 24 de maio de 2011

Craig Clevenger «The Contortionist’s Handbook»


Costumo visitar com alguma frequência um site muito interessante sobre Chuck Palahniuk, intitulado de The Cult, que é o site oficial do escritor, onde são referenciados e recomendados determinados autores e livros – Ensaio Sobre a Cegueira aparece no top. Numa das minhas últimas incursões extensivas encontrei um autor que suscitou o meu interesse, pelo facto de que o próprio Palahniuk afirmar que era o melhor livro que tinha lido nos últimos cinco ou dez anos e também porque Irvine Welsh (Trainspotting, Porno, Ecstasy) ter descrito o seu autor como um dos melhores a emergir nos últimos anos.

Assim que The Contortionist’s Handbook (2003) chegou às minhas mãos, foi uma questão de um ou dois dias para o ler e ficar extremamente satisfeito e viciado na escrita de Craig Clevenger, de modo que encomendei já o seu outro romance, publicado depois deste (2005), intitulado Dermaphoria. Não faço ideia se alguma editora portuguesa tem planos para a tradução deste romance, mas já há planos para adaptação ao cinema. Algo que só deverá acontecer em 2013. Voltando ao romance, Clevenger explora aqui um tipo de literatura transgressora/chocante, com muita alusão a drogas e análise do comportamento humano, e uma narrativa com boas referências aos grandes filmes do cinema noir, um pouquinho à semelhança do que o seu bom amigo Will Christopher Baer tem vindo a fazer com os seus romances. 

A obra explora a vida de John Dolant Vincent, um exímio falsificador de todo o tipo de documentos, em especial bilhetes de identidade e as suas constantes mudanças de nome e habitação. Vincent é Daniel Fletcher, Eric Bishop, Paul McIntyre ou Steve Eduards, dependendo da situação e da forma como melhor lhe convém. A narrativa tem dois momentos distintos: a avaliação psiquiátrica de Daniel Fletcher e o intercalamento com o seu passado. Enquanto a nossa personagem está a ser interrogada com a intenção do avaliador determinar se a overdose que Fletcher sofreu foi uma tentativa da suicídio ou fruto de uma acidental sobredosagem, Clevenger revela e explora com sensibilidade a infância triste e traumática da personagem principal. 

John Vincent nasceu com uma deformação na sua mão esquerda e tem seis dedos, o que lhe causou ao longo do seu crescimento várias situações desagradáveis, em especial na escola. Os pais de Clevenger vivem de empregos mal pagos e não tiveram dinheiro para avaliar o problema do dedo extra na mão do filho, assim como não intervieram quando o filho se começou a queixar de fortes enxaquecas. A falta de dinheiro é compreensível, de certa forma, mas há que ressalvar a negligência dos progenitores em relação à doença de John, em especial o pai, uma figura sempre ausente, ora preso, ora em liberdade e bêbado.

Cedo John se apercebe que têm uma aptidão para matemática e uma memória excepcional, a juntar à habilidade que desenvolve com as suas mãos. Enquanto os outros miúdos brincavam na rua e viviam felizes em família, o nosso pequeno marginal começa a criar falsificações para si e para quem precisava de uma falsa carta de condução. Chegado o momento em que a sua situação familiar atinge o máximo que um jovem consegue aguentar, John faz as malas e começa a viajar pelo país, mudando de identidade e tornando-se “expert” a falsificar documentos importantes para clientes que gerem negócios perigosos e clandestinos.

As drogas que John usa servem para tentar aliviar as horríveis dores que este sofre à medida que as enxaquecas aumentam, atirando-o geralmente para uma cama de hospital em que tem que responder pela ingestão indevida dos químicos. Como John é hábil nas falsificações de identidade, consegue sempre dar a volta à situação e apagar literalmente uma pessoa que tenha criado. Na presença de um psiquiatra avaliador, Clevenger mostra-nos um Daniel Fletcher extremamente evoluído no comportamento humano: John estuda meticulosamente todos os movimentos que o psiquiatra efectua e os seus próprios. Nada pode falhar. Este frente-a-frente denso relembra-me a cena em que o Dr. Hannibal Lecter se encontra enclausurado, na presença Clarice Starling, lendo e avaliando todos os movimentos e questões da inexperiente agente. Vincent, tal como Lecter, é capaz de fazer crer aos outros situações falsas, mantendo sempre uma postura calma e um discurso sóbrio.

The Contortionist’s Handbook é merecedor de toda a grande crítica que tem recebido desde a sua publicação. Craig Clevenger revelou-se-me um escritor maduro para quem publicou apenas dois romances, em particular este, o de estreia. Apesar de John Dolan Vincent não ser um exemplo de cidadão modelo, há um grande efeito de empatia e simpatia criado à sua volta, tal qual Mark Renton “Rents” de Trainspotting.

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês.

sábado, 21 de maio de 2011

«Monsters - Zona Interdita»


As comparações com Distrito 9 e Cloverfield que ouço sempre que me deparo com alguma opinião sobre este filme acabam por ser inevitáveis e, nalguns aspectos, válidas. A sinopse do filme é a seguinte: Há 6 anos atrás a NASA enviou uma sonda para o espaço para recolher amostras de possível vida alienígena. Ao regressar a sonda despenhou-se na América Central, e pouco tempo depois uma nova forma de vida apareceu no México, colocando metade do México com zona de quarentena na tentativa de conter as criaturas. Formas alienígenas invadiram e tomaram conta de uma certa parte da Terra. Algo semelhante a Cloverfield e Distrito 9.

No entanto, e ao invés de Distrito 9, onde o plano da acção se foca nos confrontos directos entre os humanos e os extra-terrestres e, mais importante ainda, nos sentimentos entre os próprios monstros e o racismo (literal) que lhes é infligido pelos humanos, Monsters – Zona Interdita aposta numa abordagem completamente oposta. Aqui, os sentimentos principais, o foco principal do filme são, sem dúvida, as relações que nós, os humanos, criamos em situação de invasão crítica. O filme conta apenas com duas personagens que se encontram no México com o objectivo de regressar a casa, aos Estados Unidos da América, tendo para isso que atravessar a perigosa zona de quarentena onde as criaturas vivem.

Andrew Kaulder (Scoot McNairy) é um fotógrafo contratado que se dirige ao México para encontrar Samantha Wynden (Whitney Able) e ajudá-la a atravessar a fronteira e regressar a casa. O filme baseia-se, muito essencialmente, na relação que Andrew e Samantha desenvolvem ao longo do difícil caminho que ambos percorrem num ambiente de melancolia e desilusão nas ruas sujas dum México empobrecido pela guerra que os humanos estão a fazer contra a forma alienígena. Contrariamente à carnificina gratuita, exploração do habitat e possível descoberta e confronto com o líder alienígena ou grandes “close-ups” das criaturas que o espectador estará à espera de encontrar num filme com um título sobre monstros, Monsters – Zona Interdita não se insere em nenhum desses parâmetros.

Andrew e Samantha numa conversa com um taxista mexicano pergunta-lhe se ele se sente bem e seguro a viver numa zona em estado de quarentena e com perigo de morte, ao que o mesmo taxista responde que sempre viveu ali a sua vida toda e que não se importa de continuar a fazer o que faz e não pensa em emigrar. Este é o primeiro indicador que passou/passará despercebido à audiência sedenta por um Alien. O segundo indicador que confirma exactamente a referida focalização nos humanos e não nos monstros, aparece nas contaminadas ruas do México na voz e nas mensagens que se encontram pintadas nas paredes: “parem com os bombardeamentos, os principais monstros são vocês” dirigidas ao exército norte-americano. Em hora e meia de filme, poucos são os confrontos com as criaturas e muitos são os olhares e diálogos entre as duas personagens. À medida que elas atravessam o árido México, apercebem-se de que no meio de tanta tristeza, o povo acaba por aceitar a presença de uma raça no seu espaço. O guião está muito bem construído e consegue tocar nas emoções fortes que Samantha e Andrew desenvolvem ao longo da viagem, abrindo sempre espaço para que as câmaras captem nas suas expressões faciais aquilo que vai na alma de cada um. 

A fotografia é, no mínimo, muito boa, e a alteração de planos curtos e longos acontece de forma pertinente e bem efectuada. Monsters – Zona Interdita poderia muito bem chamar-se Humanos – Zona Interdita, tal é a carga emocional depositada em nós mesmos. Um filme com um orçamento muito reduzido merecedor de mais que uma visualização, tal é a sua beleza e o grande papel dos dois actores.

Título original: Monsters
Realização:
Darren Aronofsky

Argumento: Gareth Edwards e Darren Aronofsky
Produção: Vertigo Films

terça-feira, 17 de maio de 2011

Carlos Ruiz Zafón «A Sombra do Vento»


Carlos Ruiz Zafón é um escritor espanhol nascido na bela cidade de Barcelona em 1964. Escritor revelação no seu país com números de vendas notáveis, o sucesso da sua ainda curta obra literária vai, pouco a pouco, ecoando e conquistando o resto do mundo, muito graças aos “best sellers” A Sombra do Vento e O Jogo do Anjo

O livro explora a – mais uma vez – bela cidade condal da década de 40, durante o regime fascista do General Franco. Daniel Sampere, a personagem principal, é um menino de 11 anos que descobre a magia de ler quando numa noite o seu pai o leva ao Cemitério dos Livros Esquecidos. Neste local mágico e único estão guardados todos os livros raros ou esquecidos pelos leitores e Daniel acaba por escolher um livro intitulado, nada mais, nada menos que A Sombra do Vento, escrito por Julián Carax. Daniel apega-se àquela obra como se fosse a coisa mais valiosa da sua vida e lê-la rapidamente. 

Deslumbrado pela obra e pela escrita da mesma, Daniel tenta descobrir um pouco mais sobre o Julián Carax e outras obras que este tenha publicado. Sem embargo, e por muito estranho que possa parecer, as obras de Carax andam a ser destruídas e Daniel quer saber porquê e quem anda a tentar fazer esquecer o legado do seu escritor favorito. Quando Daniel se apercebe que tem em seu poder a última cópia de A Sombra do Vento, engenha um ousado e fantástico plano para descobrir o paradeiro de Carax. Paralelamente a esta acção principal, Daniel conhece Clara, a doce sobrinha de Don Gustavo Barceló; Fermín Romero de Torres, a personagem mais divertida do romance e um profundo conhecedor dos bons costumes, literatura e damas; e Javier Fumero, um polícia do regime, dotado de um coração de pedra e que trava um duelo intenso com Daniel por causa de Carax.

Zafón elaborou aqui um dos mais deslumbrantes e misteriosos romances históricos dos últimos tempos, transportando-nos ao longo de quinhentas páginas para a Barcelona da guerra civil espanhola e sua bela arquitectura gótica. Ao ler este registo fiquei com uma enorme vontade de viajar atrás no tempo e conhecer a cidade e as personagens deste livro, mas, e visto que as viagens do tempo só são possíveis com um DeLorean voador, compro uma viagem de avião e posso-me sempre perder e achar-me nas largas e vistosas avenidas barcelonesas.

sábado, 14 de maio de 2011

Sunn O))) «Monoliths & Dimensions»


Há bandas que são excepcionalmente difíceis de catalogar, únicas naquilo que fazem. Os Sunn O))), constituídos por apenas Stephen O'Malley e Greg Anderson, são um dos fenómenos musicais dos últimos dez anos mais bem sucedidos do “underground” e de música como forma de arte. Fenómeno porque conseguem fazer esgotar todos os concertos que dão e, ao mesmo tempo, vendem uma boa quantidade de discos – as edições em vinil esgotam com muita facilidade. Tenho noção do atrevimento que tenho ao associar arte com bandas que aprecio, mas é com convicção que insiro estes norte-americanos na categoria artística.

De facto, o duo norte-americano aparece constantemente ligado ao movimento heavy metal, mais concretamente ao doom metal. Creio que, no entanto, é demasiado ousado e discutível fazer uma associação directa ao doom metal, não obstante a existência de algumas ramificações deste género que ecoam nas longas músicas de primeiro álbum ØØ Void até ao último split Che. “Drone” (tradução literal: “zangão”, “zumbir”), assim é a palavra que me aparece sempre que pesquiso pela sonoridade desta e de outras bandas que praticam este tipo de sonoridade absolutamente obscura, sufocante, niilista e, a espaços, bela. Muito bela. O disco de 2006, Altar, que resulta de uma colaboração com os japoneses Boris, possui um dos temas mais lindos que ouvi até hoje e que mais me corta a respiração: The Sinking Belle. Este tema, cantado por Jesse Sykes (vocalista dos Jesse Sykes & The Sweet Hereafter), abordou uma melodia e uma vertente musical que, confesso, não esperava encontrar num disco de Sunn O))).

Monoliths & Dimensions segue um pouco a linha explorada em Altar, mas investe fortemente nos alicerces daquela que é considera a obra-prima do grupo, Black One. Os longos “riffs” de guitarras genuinamente distorcidas e sujas, aquele ambiente de “cortar à faca” típico dos grandes filmes de terror dos anos 60 e 70 e aquela escuridão e nevoeiro da cidade de Silent Hill são acompanhados pela torturadora e sinistra voz de Attila Csihar (vocalista dos Mayhem), num inglês que não soa a inglês, mas a algo cantado num idioma ligado aos Montes Cárpatos e todo o misticismo vampírico que envolve esta região do centro/leste europeu. Csihar empresta a voz em três das quatro faixas, repartidas por cinquenta e quatro minutos, onde é acompanhado pelo multi-instrumentista Eyvind Kang (que já colaborou com Mr. Bungle), Dylan Carlson (mentor dos Earth, banda por onde passou Kurt Cobain), Oren Ambarchi no gongo, Julian Priester e Stuart Dempster nos trombones, entre outros artistas de gabarito. 

Os instrumentos de sopro de Alice, a percussão de Aghartha, os coros ritualistas presentes em Big Church (Megszentségteleníthetetlenségeskedéseitekért) e aqueles acordes distorcidos de Hunting & Gathering (Cydonia) tornam Monoliths & Dimensions numa experiência única, sem no entanto ser capaz de agradar a gregos e a troianos. Muito pelo contrário: o som acaba por ser fiel àquilo que a banda nos tem vindo a oferecer de disco para disco e a probabilidade de captarem a atenção de novos fãs, especialmente os que estão “desligados” em relação a este tipo de som catártico.

O disco, numa analogia cinematográfica, varia entre o cine noir de Hitchcock e Crepúsculo dos Deuses, o suspense neorótico de Shining, a simbologia de O Sétimo Selo de Ingmar Bergman, a insanidade de Martin Sheen a subir o rio para confrontar Marlon Brando em Apocalypse Now e a luz e beleza da sonoridade de 2001: Odisseia no Espaço.

8.5/10

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Chuck Palahniuk «Rant»


A ascensão que Chuck Palahniuk teve desde 1996, altura em que publica o seu primeiro romance Clube de Combate, é de louvar. Desde então, já foram publicadas cerca de onze obras, traduzidas em várias línguas, perfazendo uma média bem interessante de insanidades e revoltas contra a cultura pop, política, consumismo, materialismos vigentes.

A vida de Buster Casey, a personagem principal do livro e também conhecida por Rant, é contada sob a forma de uma biografia oral através de vários testemunhos de personagens que conviveram com ele. Logo nas primeiras páginas é-nos dada a informação de que Rant morreu e, a partir daqui, vamos ouvindo o que os seus pais, amigos e inimigos de infância, professores, colegas de “Party Crashing” e Green Taylor Simms têm a dizer sobre a infância e morte do miúdo que desafiava o medo e a dor.

De facto, Rant não teme a dor física ou psicológica, ele é-nos descrito como alguém que vai adquirindo um sistema de protecção contra aranhas, cobras, escorpiões, formigas, coiotes e outros animais perigosos. Rant não tem medo de enfiar uma mão ou um pé numa toca e ver que tipo de animal lhe vai morder e se o veneno pode pôr em risco a sua vida. Ao fim de variadíssimas acções do género, o seu corpo torna-se em algo composto por cicatrizes de todo o tipo de animais; se ele consegue aguentar estas feridas masoquistas, então conseguirá perfeitamente suportar qualquer tipo de emprego mal pago, casamento, serviço militar ou outro aspecto que poderia eventualmente tornar a sua vida num inferno. Mais: Rant tem um olfacto tão apurado que consegue, através de tampões e preservativos usados ou hálito, identificar uma pessoa e o que ela ingeriu. E nunca falha.

Os dois aspectos fulcrais do romance são o “Party Crashing” e as viagens através do tempo. O “Party Crashing” é uma actividade nocturna que se caracteriza pela decoração de carros, das mais bizarras formas e feitios, com o objectivo de colidirem uns contra os outros, fazendo crer aos demais que observem os choques de que o acidente ocorreu de facto, de que foi real e não uma encenação. Durante estes eventos nocturnos, os “party crashers” transcendem-se ao nível de deuses, esquecendo por completo as suas vidas aborrecidas e as desgraças que daqui inerem. Isto soa familiar a quem já leu Clube de Combate, pois o efeito final procurado é o mesmo: durante os combates todos se esqueciam dos seus empregos aborrecidos e dos catálogos de móveis do IKEA, durante cada combate todos eram iguais, felizes e euforicamente poderosos. Tal como os condutores destes carros.

Determinados acidentes podem resultar em viagens temporais, também. Em Rant e durante o “Party Crashing”, cada embate é encarado como uma forma diferente de estar na sociedade, no quotidiano, e algumas das personagens que relatam a vida de Rant crêem que é possível voltar atrás no tempo para matarem os seus pais e se imortalizarem, ou então, tendo relações incestuosas para se tornarem em algo divino. Neste aspecto, a imaginação de Palahniuk torna-se um pouco confusa e carente de outro tipo de elementos para sustentarem estas viagens temporais. Rant, o seu pai e Green Taylor Simms são referenciados como a mesma pessoa – de acordo com os relatos de alguns –, como se Simms tivesse viajado atrás no tempo e fosse o pai do pai de Rant, o pai de Rant e… Rant. Mas como podem estes três indivíduos coexistir?

A resposta a esta questão está certamente agendada para a parte dois e três de Rant, visto que esta obra foi escrita a pensar numa trilogia. O Sr. Palahniuk surpreendeu-me mais uma vez com esta estória bizarra e mirabolante, e por isso, lhe estou mais uma vez grato. Para este ano está previsto o lançamento de Damned, sem que não haja ainda datas para a continuação desta obra.

Nota: esta crítica foi baseada na leitura da obra no seu idioma original, o inglês.

terça-feira, 10 de maio de 2011

José Cardoso Pires «Dinossauro Excelentíssimo»


“Mestre com a caneta, mestre com o pincel. A tua escrita deslumbra pela aparente simplicidade, por aqueles pormenores deliciosos que se devem ler nas entrelinhas desse teu nevoeiro que se intromete nas manhãs e noites que criaste ao longo de uma pilha de páginas que escreveste. Aquela tua obra-prima sobre os delfins e aquele quadro que tu pintaste de forma tão anedótica e grotesca sobre aquele dinossauro? Ufa. E agora, José?” 

Estas seriam as palavras que eu diria a José Cardoso Pires numa conversa qualquer. Sentadinhos numa esplanada sob o sul ardente, mas com uns belos Carrera a proteger-nos dos raios UV, eu a beber um chá geladinho e tu um whiskey, empunhando um cigarro, mandando altas bafaradas para o ar porque sabes que eu não gosto de respirar o fumo alheio. “E falávamos do nosso amigo Antunes? Com certeza que sim. Sabes perfeitamente que tu e o Antunes são dois dos melhores escritores de sempre. Ele e aquela coisa dos pássaros e tu com aquele assunto do tipo da Gafeira dava perfeitamente para ganhar lá aquele galardão sueco, mas olha que dava mesmo. Quê? Por que razão é não que devia convidar o António? Ah, estavas a brincar, pá. Sempre irónico, sempre irónico, tst, tst.”

Estou a imaginar-me a conversar com José Cardoso Pires e tenho já dois tipos de sentimentos: um de enorme saudade, outro de gargalhada. Nunca o conheci, mas tratá-lo-ia por tu porque a relação de proximidade, amizade e intimidade que ele me transmitiu nas obras que deixou comigo e consigo, dão-me o direito de não enveredar por “o Sr. Cardoso Pires” ou “você”. Quanto à fábula sobre o dinossauro, esse animal pré-histórico (riso. Sempre existiu história) nascido ali no centro do país e que, coitadinho, os pais venderam tudo o que tinham para levá-lo para a universidade e se tornar num Doutor. Um dê-erre. Um excelentíssimo Doutor que governava o Reino dos Mexilhões com fome e miséria, mas sempre em prol da pátria. Os mexilhões aqui são o povo e o Doutor é Salazar, o “dinossauro” que até com o espelho gostava de falar e que tinha uma estátua de bronze igualzinha a ele. 

Esta sátira foi escrita em 1970, de modo que nela não se encontram alusões à Revolução dos Cravos. No entanto, no final do livro há um sinal de esperança e um vento de mudança em torno do pobre Reino. José Cardoso Pires explora aqui, com o peito cheio de coragem, o regime salazarista e ridiculariza-o ao ponto de me virem as lágrimas aos olhos de tanto rir, enquanto que a pobreza descrita, essa, me entristece. “Vai mais um copo, Zé?”

domingo, 8 de maio de 2011

Terror «Keepers of the Faith»


Os Terror são uma das mais importantes e conhecidas bandas de hardcore punk da actualidade e uma daquelas bandas que vale a pena pagar um bilhete caro nem que seja para ver uma mão cheia de temas. A banda de Los Angeles conta com membros que ostentam um currículo invejável dentro da cena hardcore norte-americana, com passagens por bandas de cariz mais “underground” de elevadíssima importância para o género musical: Carry On, Buried Alive, Donnybrook, Down to Nothing ou No Warning. Frank Novinec, ex-Hatebreed, e Carl Schwartz, vocalista dos First Blood, também estiveram envolvidos no passado recente da banda.

The Damned, The Shamed (2008) revelou-se um disco inferior comparativamente aos anteriores One with the Underdogs e Always the Hard Way, mas nada que resfriasse o ânimo e a esperança em relação a outro disco bombástico e envolvente como é o caso deste Keepers of the Faith. A banda oferece-nos um disco extremamente equilibrado, com alguma variedade, letras e refrões orientados para a supremacia do ser e a honestidade e camaradagem da própria cena hardcore punk e um instrumental que, apesar de nunca chegar a ser exuberante, cumpre na íntegra os pergaminhos do género musical.

Os treze temas que compõem este registo recuperam ideias da gloriosa década de 80 norte-americana e mesclam-nas com o próprio som que a banda nos tem apresentado desde a sua fundação, com algumas influências do metal. A garra que a banda usa na composição de cada tema é de louvar e deve servir de inspiração a todas as bandas do espectro hardcore/metal, pois sem ela, este e outros discos nunca poderiam ver a luz do dia. Your Enemies Are Mine, Stick Tight, Stay Free, Only Death, The Struggle e Keepers of the Faith estão perfeitamente à altura de Overcome, One with the Underdogs, Strike you Down, You Can’t Break Me, Lost, Last of the Die Hards e Never Alone

Superior a The Damned, The Shamed, e com uma produção muito boa, este Keepers of the Faith não só se coloca facilmente no mesmo nível de qualidade dos dois anteriores registos, como também é um disco que daqui a vinte anos ainda será falado, tal como Blood, Sweat and No Tears ainda o é. Mais: na ausência da falta de criatividade e saturação de ideias denotadas nos últimos dois registos de Hatebreed, os Terror podem muito facilmente usurpar-lhes o trono.

8.5/10

quarta-feira, 4 de maio de 2011

SWR Barroselas Metalfest XIV


Em tempos de recessão económica e de grandes cortes num dos bens essenciais de qualquer país que se denomina como “desenvolvido”, a cultura, a pacata vila de Barroselas, localizada no alto-Minho, e a organização do Steel Warriors Rebellion estão mais uma vez de parabéns, pois ofereceram mais um luxuoso cardápio musical e uma excelente alternativa aos bacocos artistas da música ligeira e aos festivais de música comercial que se realizam no sul do país.
 
No fim de Abril e início de Maio chuvosos, a décima quarta edição deste festival de rock pesado tinha como maior atracção os lendários Venom, os britânicos que fundaram o género “black metal”, precisamente com o tema e álbum Black Metal. Apesar deste nome de peso, houve também aqui bandas com grande historial e presença no espectro do rock pesado, como Ratos de Porão, Malevolent Creation, Atheist, Voivod e duas grandes surpresas. Analisando primeiramente as bandas citadas, Venom acabou por ser uma grande desilusão, na medida em que o som que se fazia ouvir no recinto principal deixava bastante a desejar, oscilando entre o fraco e o inaudível (muitos se queixaram dos tímpanos) e tudo isto muito por culpa do próprio técnico de som da banda.  Para a história fica também um início de concerto marcado pelo carismático tema Black Metal e um repertório algo previsível, ou não estivéssemos perante uma banda que denota grande cansaço em palco e que em 2006 lançou um álbum intitulado Metal Black.
 
Ratos de Porão estiveram num patamar completamente diferente, como lhes é habitual. Os brasileiros, ícones do crust/crossover, destilaram temas cantados em português e recordaram os clássicos Crucificados pelo Sistema, Agressão/Repressão, Amazônia Nunca Mais, entre outros, onde houve também tempo para uma “cover” de Extreme Noise Terror, Work for Never, em memória do recém-falecido Phil Vane. Actuação feroz e cáustica, dirigida pelo experiente “frontman” João Gordo, que aproveitou para abordar vários temas da actualidade sócio-política. Os Voivod, que no passado contaram com os serviços de Jason Newsted no baixo, protagonizaram umas das experiências mais divertidas e calorosas do festival. Sem sombra de dúvidas que as coreografias e a interacção com o público por parte do vocalista Denis "Snake" Bélanger não deixaram ninguém indiferente e conseguiu mesmo captar a atenção daqueles que não estavam propriamente atentos ao espectáculo. Destaque ainda para a muito sentida interpretação do tema Astronomy Domine, dos Pink Floyd, em honra do falecido Denis "Piggy" D'Amour, um dos fundadores da banda. O death metal com selo de qualidade da Flórida dos Malevolent Creation merece igual destaque. O quinteto norte-americano brindou o público com uma forte descarga de death metal rápido e um profissionalismo em palco assinalável, isto apesar de algumas falhas técnicas (som, entenda-se). Divide and Conquer, Slaughterhouse, Ten Comandments, e United Hate, claro, fizeram as delícias de todos os aficionados da banda. Os Atheist, que a par de Pestilence e Cynic, marcaram uma era no início nos anos 90 pela forma como fundiram técnicas e estruturas tipicamente jazz com o death metal, deram um potente e tecnicista concerto, mostrando que Jupiter, de 2010, foi bem mais que uma mera tentativa de ganhar dinheiro à custa do glorioso passado.

No entanto, as grandes surpresas do festival pertenceram a Menace Ruine e Today Is the Day. Os primeiros, compostos por um duo, apresentaram logo no primeiro dia um som invulgar, misterioso e audaz, bebendo fortes influências do drone e do noise. Infelizmente para a banda e para o espectáculo, o público preferiu ignorar ou não compreender o que se estava a passar em palco, ou simplesmente aproveitou para regressar às barracas da cerveja e dos cachorros. Para a história fica uma interpretação intimista dos temas Collapse, The Upper Hand; Utterly Destitute, Dismantling, Bonded by Wyrd e Primal Waters Bed. Infelizmente, os Today Is the Day pardeceram do mesmo mal: indiferença e falta de público. Liderados pela mente criativa de Steve Austin - responsável por dar a conhecer ao mundo bandas como Lamb of God -, os Today Is the Day apresentam uma sonoridade que, apesar de ter fortes raízes no noise rock, dificilmente pode ser catalogada, tal é a disparidade de géneros e influências que a banda explora. Temple of the Morning Star, Possession, e Free at Last foram alguns dos temas fortes do final de tarde/noite, que face à quebra de uma corda na guitarra de Austin, ficou sem a presença de Willpower
 
Há que realçar e mencionar também as actuações de Cough, Alcest, Soilent Green e Magrudergrind, que não obstante o facto de praticarem estilos completamente diferentes, contribuíram muito para que o festival fosse bem agradável. Por último, um forte incentivo a todas as bandas portuguesas que marcaram presença neste festival, com especial destaque para We Are the Damned e Grog. Para o ano há mais.

  Cough

 Ratos de Porão

Menace Ruine

domingo, 1 de maio de 2011

«O Wrestler»


Apesar de ter tido um grande desempenho e algum destaque em Sin City - Cidade do Pecado, em 2005, creio que todos davam Mickey Rourke como morto para o cinema, condenado a desempenhar papéis pequenos e secundários para o resto da sua carreira. Eu próprio pensava isso, tendo especial atenção ao facto de que a Rourke não lhe estavam a ser atribuídos papéis principais em bons filmes, e também pelo facto de que tinha participado no pindérico Duplo Team, com Jean-Claude van Damme e Dennis Rodman.

Eis então que Darren Aronofsky (realizador que já nos ofereceu A Vida não É um Sonho (Requiem for a Dream) e – recentemente - Cisne Negro) decide fazer não só o filme da sua vida, como também o da de Rourke, através de um filme onde é utilizada uma balança desnivelada e com um só peso: o drama. Mickey Rourke interpreta o papel de Randy “The Ram” Robinson, um “wrestler” cujo pico da sua carreira se deu há duas décadas atrás, em 1989, num combate épico contra The Ayatollah. Nesses dias, Randy era uma autêntica celebridade.

Como em tudo na vida, a fama é efémera e Randy leva agora uma vida precária como trabalhador num supermercado, contando as notas para poder pagar a renda e as substâncias dopantes que lhe permitem, por umas horas nos fins-de-semana, ser o que foi no passado: um “wrestler”. É notória a satisfação na cara de Randy sempre que este sobe ao ringue e enfrenta outros lutadores, enquanto lhes aplica os seus truques e habilidades especiais. No entanto, e apesar de todos os combates serem previamente encenados, todos os lutadores se magoam propositadamente de forma brutal em nome do espectáculo. Randy não existe: a felicidade chega apenas na pele de “The Ram”.

No entanto, e para gáudio da nossa personagem principal, a sua vida pessoal sofre uma ligeira alteração quando numa visita a uma casa de “strip tease”, conhece a bela Cassidy (Marissa Tomei). À medida que ambos se conhecem, Cassidy incentiva Randy a visitar a sua filha Stephanie (Evan Rachel Wood) e retomar uma relação de pai-filha que há muito estava disfuncional e sem comunicação entre ambos. Aronofsky capta na perfeição a situação tensa que existe entre um pai que abandonou a sua filha e que agora, passados muitos anos, a tenta recuperar. Os momentos mais alegres do filme dão-se precisamente nas cenas em que ambos passam juntos, recuperando o passado e tentando emendar o presente e o futuro.

A situação de Randy agrava-se quando no final de um combate, este tem um ataque cardíaco, ficando em risco de vida e expressamente proibido combater. Mesmo assim, o amor à modalidade é tal que dias após a cirurgia, o nosso lutador regressa ao ginásio e às corridas nas pacatas florestas de New Jersey. A solidão, o desespero e a precariedade da vida de Rourke são expostas de uma forma crua e dolorosa para os olhos.

Não obstante os problemas de saúde e as boas relações com Cassidy e Stephanie, é-lhe comunicada a oportunidade de reeditar o famoso combate de 1989 com The Ayatollah. Se aceitar, pode morrer. Se rejeitar, viverá para sempre miserável, pois o "wrestling" e "The Ram" são tudo na sua vida. O Wrestler explora os aspectos da solidão e desespero humano e tudo aquilo que conseguimos eventualmente encontrar dentro de nós para dar a volta a essa fatalidade. A cena final é das mais emotivas e mais belas a que tive a oportunidade de assistir num filme que já revi mais que uma vez e que hei-de continuar a fazê-lo. Obrigado, Mickey Rourke. 

Título original: The Wrestler.
Realizado por Darren Aronofsky. Escrito por Robert D. Siegel.
Produzido por Wild Bunch, Protozoa Pictures, Saturn Films e Top Rope.